Paris Blues: música, amor e identidade


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     Situado historicamente junto dos últimos suspiros das Leis Jim Crow, este filme tem registrado em seu cerne a tensão da segregação racial protegida e justificada pela lei nos Estados Unidos. É um reflexo, mas num espelho tríptico, onde temos identidade, ser e sociedade reproduzidos nessa imagem virtual que é o Cinema. O localizamos no meio de um caminho, entre Rosa Parks e a Marcha sobre Washington, e este encontra na ‘liberta, igualitária e fraterna’ Paris um conforto para desenvolver sua história carregada de americanismos. O filme é Paris Blues: (des)preocupado, jovial e arrebatadoramente ritmado pelo jazz.

Como protagonistas, dois dos mais proeminentes jazzistas americanos na cena parisiense: o trombonista Ram Bowen e o saxofonista Eddie Cook, interpretados por Paul Newman e Sidney Poitier respectivamente. De imediato somos apresentados à dinâmica dessa amizade onde a parcimônia e moderação de Eddie se complementam aos excessos impetuosos de Ram. Yin e Yang, a primeira cena que nos explica tal dinâmica é, justamente, uma discussão onde daria-se a entender que a parceria de longa data chegou ao fim. Chegaria, se não fosse a noite, o jazz e tais paixões que os unem.


Logo em seguida conhecemos as personagens que nos servirão de contrapeso nessa balança desregulada. Lillian, interpretada por Joanne Woodward, e Connie, interpretada por Diahann Carroll, são duas amigas que acabaram de desembarcar em Paris para suas férias. Tão logo desembarcaram e já foram seduzidas pelo convite de Ram para vê-lo tocar com sua banda no Club 33, reduto do jazz em um tradicional bar-porão.

Paradoxalmente, para assimilar mais a fundo o filme tive que tomar conta de alguns entendimentos que naquela altura, em 1961, já pareciam levemente antiquados. Quando acima o defini como jovial, é muito por conta de um frenesi imprudente (que sinto impresso principalmente nas atuações de Paul Newman e Sidney Poitier) que é reaproveitado daquela euforia pós Primeira Guerra dos années folles (os loucos anos 20), aqui traduzido pelas concepções existencialistas dessa geração beat e sua relação com matrimônio, sexo, afeto, arte, vícios, questões sociais, raízes, pertencimento.

E como plano de fundo, esta Paris americanizada. Uma homenagem apaixonada, ou fantasiosa, que compõe-se ainda com tais conceitos vindouros da década de 20: o berço da cultura e da arte, do refinamento. Cidade Luz do amor, do romantismo, de beijos desinibidos a qualquer hora em qualquer lugar. Paris Blues é fruto da relação de amor e - muitas vezes - ódio entre Norte América e o Velho Continente, sob a perspectiva de uma juventude expatriada (e talvez decepcionada, ou inconformada, com a terra natal). 

Apesar de exaltar paixões, Paris Blues não consegue se afastar daquilo que talvez mais deseja fugir, que é um certo egocentrismo absoluto americano. Não há chance de lermos pelo viés da crítica esta caricatura do “homem grosseiramente tradicional” que o filme faz de Ram Bowen se não há um arco desenvolvendo uma redenção, e no fim, resolve-se que seria altruísta da parte dele abdicar do amor em prol da música, seu real propósito. No fluxo avant-garde da Paris do início dos anos 60, o músico descolado carrega ainda uma moral conservadora de outrora. Você pode amar ou odiar Ram Bowen, mas o que é este personagem senão, no fim das contas, uma dramatização hiper-realista do norte americano médio?

E então nesse sentido, o filme usa como artifícios o próprio cinema para trabalhar as tensões entre real versus idealizado, expectativa versus realidade. Há um certo didatismo, inclusive na intenção de se fazer diferente em sua época. Na abertura, que ambienta este espaço do Club 33 com seu público de todas as idades e condições, casais interraciais e homoafetivos, já sentimos que Paris Blues manda um recado para a audiência norte americana: este é um filme diferente, moderno; não estamos nos Estados Unidos, aqui é Europa. Contudo, não há muito que se possa fazer para contornar um público tradicionalista e as imposições do Código Hays.


Logo neste início, o filme nos deixa entender que os casais se formarão em uma dinâmica interracial, e isso teria acontecido não fosse o pedido de mudança feito pelo estúdio por achar que “o público não estaria preparado” (ademais, Paul Newman e Joanne Woodward já eram o casal suprassumo de Hollywood). O texto também é afiado, mas... Há sempre um ‘mas’. De fato, a versão final do filme expõe um roteiro que exala conflitos de interesses, seja da parte do estúdio ou das quatro mãos que o adaptaram a partir do romance de Harold Flender, e que por sua vez é completamente centrado em Eddie Cook, suas questões identitárias-raciais e seu antiamericanismo, temáticas como algumas outras que o filme apenas flerta ou não se aprofunda devidamente.

O filme tem um quinto protagonista, um sujeito oculto, que conduz toda a narrativa: Paris, é claro. É, sem dúvidas, um ótimo filme no quesito ambientações. É um equilíbrio entre os climas trabalhados pelo diretor Martin Ritt e os conflituosos casais; e tais conflitos e tensões acontecem dentro de uma chave dicotômica bem demarcada: homem e mulher, branco e negro, identidade e conformidade, EUA e França, egoísmo e boa vontade, a bohemia e a vida comum (transformados em um diálogo do roteiro como “noite e dia”). E dentro das improbabilidades, o amor!


Este trabalho de ambientação é então elevado ao máximo pela música. A trilha é performada por Duke Ellington com participação de Louis Armstrong, dois gigantes do jazz. Louis Armstrong também atua no filme como Wild Man Moore, um grande trompetista americano que irá tocar em um concerto no Palais de Chaillot. Ram tem ele como figura de inspiração, uma vez que seu maior conflito no filme é o desconforto que sente consigo mesmo por não ser levado a sério pelos outros como compositor e melodista. A melhor sequência musical de Paris Blues é quando Wild Man Moore e seu grupo de músicos invadem o Club 33, convocando Ram, Eddie e o restante da pequena banda para uma jam session, uma “batalha” de jazz de improviso. Um grande momento que retém em si, e reforça no filme, o espírito de integração indiscriminada do jazz.

Dentro dos temas que discute, o principal é a questão racial. Eddie está há 5 anos em Paris e não sente a menor falta de casa. Alí, diz ser respeitado como um músico e não mais definido como “um músico negro” como antes, hoje não há mais o que provar a ninguém. Ao conhecer Connie, professora universitária negra, se vê forçado a encarar que sua experiência pode servir de combustível para as discussões do (ainda jovem) Movimento pelos Direitos Civis.

Algumas questões feministas também são mote do roteiro, uma vez que as duas protagonistas femininas, apesar de também servirem como catalisadoras das circunstâncias que cada protagonista masculino irá enfrentar, se fazem ouvidas dentro de suas vontades, desejos e convicções. Já mencionei que Connie traz à tona as discussões dos Direitos Civis carregada pela intensidade dos sentimentos de raíz e origens dentro daquilo que significa ser estadunidense. Lillian, por outro lado, é mãe solteira de dois. E apesar da desilusão com o casamento e dos sacrifícios da maternidade, sua personagem mostra à Ram Bowen que o amor existe até para cafajestes e desquitadas, e não tem vergonha nenhuma de se expor, de se impor e de expressar o que sente.

Uma questão implícita a este casal, inclusive, é uma certa “inversão de tradições”, que faz com que Ram estabeleça um elo com o público norte americano dentro de suas hipocrisias: ele tem uma relação de sexo casual com Marie Séoul, a francesa dona do clube onde toca. Tudo está bem, pois é um homem solteiro e muito cobiçado. Quando conhece Lillian, assusta-se ao encontrar uma mulher americana que dá as primeiras investidas, que abre-se ao sexo no primeiro encontro, e que não carrega julgamento moral algum por conta de suas vontades. Exatamente como “a mulher francesa”.

Um terceiro objeto de discussão é o consumo de drogas. Michel “o cigano”, o violonista mais talentoso da cena, não consegue largar seu vício em cocaína e Ram se sente responsável por seu amigo, uma vez que ele se encarrega dos cuidados nos momentos de efeito, de crise e até dos pagamentos pela droga. Este tema, na verdade, me parece mais uma maneira de aprofundar psicologicamente Ram e de estimular uma reflexão sobre a vida na arte e seus vícios. Porém rende uma cena muito tocante onde Michel fica frente a frente com seu possível futuro. Ainda assim, também é incomum vermos esta questão abordada de maneira tão explícita e corporal por um filme da época. 


Puxando este gancho, a já dita intenção de se fazer diferente é o que permeia Paris Blues com um tom vanguardista. O filme discute a questão racial por um prisma que esteve presente em todas as manifestações e marchas pelos Direitos Civis nos EUA até a queda, em 1964, das legislações estaduais que estabeleciam a segregação racial. Estas questões raciais, sociais e comportamentais presentes no filme, anos depois estariam embrenhados no cinema, na música pop, folk, rock, no movimento hippie e no grande apogeu da década de 60, o Festival de Woodstock. E então, 63 anos depois, Paris Blues ainda conserva em seu íntimo uma jovialidade atraente e consciente. 

Como sempre, deixo aqui no fim um trecho do filme para que você o conheça visualmente - e a quem interessar, Paris Blues está disponível aqui na íntegra e em uma boa qualidade (sem legendas) -. Para a escrita deste texto, me guiei também por algumas ideias expostas por Sérgio Vaz em seu blog + de 50 Anos de Filmes.


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