A partir do advento do Cinema, e com o desenvolvimento de uma linguagem já no início do século XX, desde 1912 o Comitê Olímpico Internacional preocupa-se em registrar cada edição de seus eventos poliesportivos. Para os Jogos Olímpicos de Verão de 1972, oito diretores do cinema mundial foram convidados a produzir um pequeno filme sobre algum aspecto que os interessava nas competições ou no evento. Miloš Forman (Tchecoslováquia; “O Baile dos Bombeiros”, “Um Estranho no Ninho”), Kon Ichikawa (Japão; “A Vingança do Ator” e “A Família Inugami”), Claude Lelouch (França; “Um Homem, Uma Mulher”, “Longe do Vietnã”), Yuri Ozerov (URSS; pentalogia “Libertação”), Arthur Penn (Estados Unidos; “Bonnie e Clyde”, “A Caçada Humana”), Michael Pfleghar (Alemanha Ocidental; “O Amor Através dos Séculos”, “Dead Woman from Beverly Hills”), John Schlesinger (Grã-Bretanha; "Perdidos na noite", "Sunday Bloody Sunday") e Mai Zetterling (Suécia; “As Garotas”, “Jogos da Noite”) compõem então o antológico Visions of Eight.
De início somos avisados que este não é um registro cronológico dos jogos, e que muito menos se propõe a glorificar uns ou outros. O que iremos assistir, na verdade, é uma sequência de segmentos poéticos sobre o evento máximo da capacidade física da espécie humana, investigados a partir de pontos de vista diversos do globo. Lançado em 1973, um ano após os jogos olímpicos em questão, o filme também carrega consigo uma intenção silenciosa de não ruminar os horrores do massacre ocorrido dentro dos muros do Parque Olímpico, onde onze integrantes da equipe de Israel foram feitos reféns e assassinados pelo grupo palestino Setembro Negro. Ao fim, o documentário é dedicado às vítimas.
No episódio inicial “The Beginning”, Yuri Ozerov nos diz que “a tensão da espera é o mais interessante”; o foco é no momento que antecede o início, a espera ansiosa do público e dos jornalistas, a apreensão dos e das atletas e como todos têm sua maneira própria e individual de conectar-se com sua força superior - humana e divina. Já para Mai Zetterling em “The Strongest”, o que chama sua atenção é o comprometimento total dos praticantes de halterofilismo (levantamento de peso), que abdicam de suas vidas em razão disso. Porém, o interesse dela não está na disciplina ou na regragem do esporte: está na obsessão.
Ela então trabalha com justaposições informativas, rítmicas e imagéticas, seja na maneira com que insere dados e números - da quantidade absurda de alimentos que os atletas irão consumir durante o evento e das ferramentas que depois serão reaproveitadas pelas Forças Armadas da Alemanha, e quanto tudo isso custou -, seja na consonância da decupagem em relação à montagem - ora observativa em planos fechados ou abertos e ora ritmada em detalhes ou movimentações de câmera -, ou na composição de seus planos que revela um individualismo coletivo dos praticantes do referido esporte. E todo esse jogo que Mai faz é concluído com o desmontar do “espetáculo”. No fim, entendemos que o halterofilismo está para estes atletas assim como o Cinema está para ela.
Os contrapontos continuam a ser o fio condutor do episódio seguinte “The Highest” de Arthur Penn. Aqui temos um arranjo de imagens belíssimas da competição de salto com vara, potencializadas por uma tensão construída pelo slow-motion aliado ao desenho sonoro, indicando que para um vencer outros devem perder.
Na sequência Michael Pfleghar resolve direcionar sua atenção às mulheres atletas, que naquela edição dos jogos estavam em seu maior número na história até então. Há uma montagem interessante que evidencia os diferentes rostos, as diversas etnias e culturas, mas “The Women” então caminha para uma exaltação da força, companheirismo, leveza e competência das atletas e ginastas alemãs, e bom… considerando que dos oito diretores este é natural do país anfitrião, não me surpreendi ao encontrar uma intenção ufanista muito de leve no plano de fundo, pois era o que eu esperava em qualquer que fosse o objeto de sua atenção. Diria que este seria o momento para se fazer uma pausa, um lanchinho, uma ida ao banheiro, ou então apenas curtir um pouco da trilha pop-burguesa-cintilante de Henry Mancini.
Kon Ichikawa inicia “The Fastest” nos informando de que para registrar as “efêmeras” corridas de 100 metros rasos foram utilizados 6000m de filme em 34 câmeras. O diretor reflete, a partir disso, sobre a experiência humana em um mundo moderno. Aqui, o tempo é 4x mais lento que o normal; os olhos devem olhar para algo mas nada vêem. Ele intercala com destreza as imagens especulativas de cada um dos atletas-personagens dessa digressão, para no fim, nos mostrar em um plano aberto a crua e breve sequência. A mecanização do mundo moderno transforma 10 segundos em uma eternidade. E esse é um prelúdio para o que vem a seguir.
Miloš Forman aborda a mais intensa, exaustiva e dramática prova do atletismo - o decatlo, que dura dois dias e constitui-se de 10 etapas - com aquilo que melhor define o seu estilo cinematográfico: “The Decathlon” é um registro sagaz, atento aos detalhes, ironicamente cômico e, claro, musicado do início ao fim. É na montagem que ele encontra a ferramenta de linguagem que permite com que haja a tensão dos diversos ritmos e intenções de utilização das imagens e dos números musicais.
A perspectiva de se olhar para a competição como espetáculo, antes abordada por Mai Zetterling e seus halterofilistas, retorna aqui entrelaçando números de música clássica, de música e dança folclórica bavária e de yodeling com imagens da competição, da preparação e desmontagem das provas, dos êxitos e fracassos dos atletas, e do público que a assiste (ou dorme); identificando também um ritmo em cada uma das etapas do decatlo a partir das sequências musicais por ele escolhidas. E no clímax do segmento, na última prova da competição, uma sequência que justapõe a corrida dos 1500 metros com a Sinfonia nº 9 de Beethoven, sendo este o ponto alto do melhor episódio que há neste filme.
Volto ao início do texto onde suponho que este documentário tem uma “intenção silenciosa” de não ruminar os eventos do Massacre de Munique, mas isso não quer dizer que este seja ignorado. Aqui em “The Longest”, John Schlesinger se atenta aos maratonistas, como eles passam meses treinando para páreos de mais de 40km e competindo, ainda assim, contra muito mais do que a prova em si. Foco, concentração, medo. O fator psicológico neste segmento é, no fim das contas, o que orienta a investigação proposta, e o ocorrido é sentido na pele pelo personagem principal que Schlesinger escolhe para compartilhar o ponto de vista.
Pela grandiosidade da modalidade, as externas ao Parque Olímpico são feitas em gruas, planos aéreos ou a pinos do alto de prédios, tracking shots nas ruas. Há uma sequência sensacional em que evidencia-se a fragilidade emocional e psicológica causada pelo desgaste físico, cobrança interna e estado de alerta devido ao atentado. No fim, o personagem examinado por Schlesinger vê o pódio ser preenchido sem ele, o ápice do tom fúnebre e de vigilância paranoica evidenciado pelas imagens e pela trilha, mas que bruscamente é substituído pela pomposa fanfarra que encerra esta edição dos Jogos Olímpicos de Verão. E no fim, tanto nós espectadores quanto o maratonista, relembramos que “os jogos devem continuar” - como a vida -, e dali quatro anos o mundo, apesar de seus males, se reunirá novamente no espírito amistoso dos esportes olímpicos.
O filme foi exibido fora da competição do Festival de Cannes em 1973, e novamente como parte da programação de clássicos do Festival em 2013. Venceu o Globo de Ouro em 1974 de Melhor Documentário, e ainda assim, Visions of Eight permanece até hoje uma jóia desconhecida ou subestimada em seu valor pelos infortúnios ocorridos do ano em que foi produzido. Ele (e outros documentários oficiais) encontra-se disponível na íntegra no Olympic Channel com legendas em diversas línguas. E se você ficou curioso, mas ainda tem dúvidas em assistir ou não, eu escolhi uma cena do filme pra te convencer de que com certeza vale a pena!



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