Guys and Dolls, um clássico musical moderno


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O cinema nunca largou da música. Das primeiras exibições de imagens em movimento feitas pelos irmãos Lumière aos experimentos com narrativa feitos por Georges Méliès, tudo sempre foi musicado, seja para abafar o som mecânico da projeção, seja para tornar mais calorosa e menos fantasmagórica a nova atração tecnológica, ou para manter o ritmo dos espetáculos nos cafés concertos de Vaudevilles, teatros de variedades e music halls (que tinham o cinematógrafo junto de tantas outras atrações, como números de dança, apresentações musicais clássicas e populares, trupes de comédia, shows de acrobacia, mágica e ilusionismo, teatro, enfim).

Durante o período do cinema silencioso a música continuou presente no espetáculo cinematográfico com o acompanhamento de pequenas orquestras ou “bandas de um homem só”, e até mesmo de vocalistas atrás da tela “dublando” uma sequência. E então, a partir do surgimento do som sincronizado, no momento em que o público ouviu ser reproduzido o primeiro acorde que marcou a transição para o cinema sonoro, inicia-se uma tradição: a dos filmes musicais. 

Da década de 40 à década de 60 o gênero viveu seu apogeu, sua Era de Ouro. Havia público, notoriedade, grandes nomes envolvidos, e neste momento é o gênero que talvez mais tenha suas raízes ainda estabelecidas no teatro e seu corpo bem desenvolvido em uma jovem linguagem cinematográfica. Indo de encontro com a repetitiva fórmula narrativa que já definia o gênero, em 1955 a MGM lança Guys and Dolls, adaptando o espetáculo de grande sucesso na Broadway, que por sua vez surgiu a partir de duas pequenas crônicas do jornalista Damon Runyon. 

Joseph L. Mankiewicz ("O Ódio É Cego", "A Malvada", "A Condessa Descalça") já havia feito filmes noir e de espionagem, comédias românticas, dramas e épicos, afirmando-se sempre como um diretor contraventor que sabia ‘rebolar’ dentro dos limites impostos pela censura do Código Hays. Para o único musical de sua filmografia decidiu tumultuar de leve os símbolos que identificam ou que se esperam do gênero em questão.

O filme conta paralelamente a história de dois casais: Frank Sinatra é Nathan Detroit, um veterano no submundo dos jogos de azar que organiza as noites de jogatina sempre em locais novos e diferentes para despistar o tenente de polícia que o persegue. As pessoas que habitualmente cediam tais espaços a ele passam a rejeitar pela pressão da polícia, com exceção da garagem de Biltmore que cobra então o valor caução de $1000 dólares pela garantia do sucesso da noite. Para piorar os problemas de Nathan, sua noiva Adelaide, interpretada por Vivian Blaine que também deu vida ao papel da vedete na montagem original da Broadway, já não aguenta mais ser enrolada há 14 anos e insiste que ele mude o rumo da vida para então se casarem. Ele reluta pois seu único talento é realmente a organização dos sórdidos eventos, e teme a “tranquilidade” da vida conjugal. 

A solução de pelo menos um de seus problemas vem com a chegada de Sky Masterson, um célebre e bem sucedido jogador viajante que está disposto a se arriscar em qualquer negócio. Nathan então aposta $1000 dólares que Sky não conseguirá levar uma garota de sua escolha para jantar em Havana. A garota? ‘Sargenta’ Sarah Brown, a missionária que lidera uma sucursal do Exército da Salvação e que se opõe veementemente à vida dos jogos, bebidas e vícios. Considerando esta uma missão impossível, a tradicional noite de apostas de Nathan Detroit está (quase) garantida.


E aqui começam as quebras nas tradições, com a escalação de dois não-cantores profissionais que também não foram dublados nas sequências musicais: Marlon Brando e Jean Simmons. Nos bastidores correu também a história de que o clima entre o protagonista Brando e o coadjuvante Sinatra não era dos melhores, uma vez que além de não cantar profissionalmente, o papel do protagonista foi injustamente “roubado” da “maior estrela no elenco” pelo “brutamontes que murmura”. 

Fofocas à parte, é claro que a escalação de Brando se dá não apenas pelo fato de que em 5 anos de carreira seu nome já era sinônimo de sucesso nas bilheterias, mas principalmente pela sua formação na Actors Studio - instituição responsável pelo Método Stanislavski que revolucionou a atuação em Hollywood nos anos 50 e perpetua-se aos dias de hoje - e também pela imagem que já havia construído no star system hollywoodiano.

Em outras palavras, era preciso um ator que não trabalhasse com os vícios do gênero e que desse conta das nuances entre canalhice, índole duvidosa, cordialidade e generosidade que o personagem traz. Além do mais, apenas ele poderia expressar tais sentimentos conflituosos da natureza humana inclusive nas músicas; não é que ele cante mal, mas sim com uma sinceridade metódica, um compasso ansioso ou relaxado demais, que se encaixa perfeitamente com o tom melodicamente doce e presença de cena geniosamente forte de sua parceira Jean Simmons.

Essa certa visceralidade nas performances do elenco só pôde ser concebida também por conta da visão moderna que Mankiewicz tinha do espaço físico. Guys and Dolls tem, como todos os musicais da época, uma direção de arte e design de produção grandiosos. Mas justamente o que o difere dos outros, porque constrói seus cenários em meio a grafismos, texturas, neons e frenesi visual desta Midtown Manhattan. Suas cores são vibrantes, mas não brilhantes; os tons são duros, terrosos, contrastantes entre o vermelho e o verde, o preto e o branco (ou o chumbo e o bege-caramelo), o claro e o escuro solidificados por uma luz severa, sombras bem marcadas, e seu horizonte diurno caótico pintado em um sólido branco. Assistindo ao filme, pude entender como talvez este tenha ajudado a forjar vários dos signos visuais, estéticos e gráficos que hoje temos dos anos 50.


Nas sequências musicais que trazem uma certa abstração da realidade, e que comumente vemos desenrolar-se em cenários e estúdios opulentos na maioria dos musicais da Era de Ouro, aqui acontecem em peculiares situações que agregam e aprofundam tais abstração à narrativa, como o esgoto onde Brando performa “Luck Be a Lady Tonight”, e o número de dança/briga generalizada na cena do bar em Havana. Em vista disso, percebo o comprometimento de Mankiewicz com uma certa realidade inclusive em tais momentos; tanto os bailados ou os shows das vedetes quanto as brigas ou as apostas são violentamente coreografadas, permitindo que assim brilhe os pomposos Frank Sinatra e Vivian Blaine e os arredios Marlon Brando e Jean Simmons.

As questões de moralidade são o mote do roteiro e percebemos isso já na sequência de abertura. É claro que, tratando-se de um filme da Hollywood Clássica, tal moral é completamente questionada nos dias atuais, logo não irei me aprofundar nas problemáticas de representação de uma outra cultura distante da americana, ou do roteiro machocentrado. Apenas como um exemplo, a motivação das personagens femininas acompanham as vontades de seus pares românticos; o casal protagonista é unido por uma aposta que Sky faz, mas quando revelado, isso está longe de ser um problema para Sarah.

O problema acontece no momento em que ela se sente “usada” por conta de um mal entendido que inicia-se a partir de uma vantagem que Nathan conseguiria levar em benefício próprio. E está tudo certo com este sendo o ponto de virada para o terceiro ato e início de uma redenção dos inescrupulosos homens. Mas até nesse sentido, pode-se perceber um tensionamento dessa moral na dinâmica dos casais: o descompromisso e presunção de Nathan Detroit versus a dedicação e integridade de Adelaide, ou, a arrogância e leviandade de Sky Masterson versus a rigidez e moralismo cristão de Sarah Brown.


De um modo geral, Guys and Dolls é um ótimo entretenimento para quem gosta desse estilo de filme. Contudo, suas duas horas e meia de duração podem ser exigentes para algumas pessoas, o que não é o meu caso. Mesmo assim confesso que é difícil de segurar a atenção em algumas sequências musicais, até por vezes serem expositivas demais em relação ao roteiro. Porque no fim das contas…é um musical, e que não se propõe a reinventar a fórmula; só agitar um pouco as coisas com sua intenção muito bem sucedida de transformar cinematograficamente a experiência teatral de um show da Broadway.

Funciona muito bem também como um filme que questiona em sua época de produção a ironia que existe quando se usa uma certa régua moral para medir o mundo. Da parte de Mankiewicz, demonstra muita sensibilidade para o momento de transição em que se inseria, tanto em uma questão de estilos cinematográficos quanto na questão de o Cinema, como arte, poder olhar de maneira crítica para uma sociedade e buscar esclarecer para a mesma que é necessário fazer o movimento contrário. Um sintoma esperançoso do que mais tarde viria a ser a Nova Hollywood nos anos 70, que rompe com todas as convenções, inclusive dentro do gênero do musical. Mas isso é papo para um outro dia!

Finalizo deixando aqui embaixo uma das minhas sequências favoritas para você se convença de vez a assistir ao filme. Bom divertimento!


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